Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

terça-feira, 25 de outubro de 2011

É tarde


Benito Ramos, pintor chileno


Era sereno o ódio e calada a mentira!
Eram serenas as manhãs...
E os beijos orvalhados
Eram serenos!
Havia um sorriso de nada
No silêncio a que o fogo obriga.
Era o teu sorriso, Pai...
Nada! Era tanta coisa feita de Nada!
Tu, o que eras, Pai?
Um pensamento que fustiga...
E eu? O fruto verde da intriga!
Bem sei...tu passavas
E, se olhavas o verde pálido...
Havia no teu olhar um anoitecer cálido.
E confessas ousadamente,
O que recusaste cobardemente!
É tarde. Tão tarde...
Que a dor já não arde.
É tão tarde que minto
Naquilo que porventura sinto.


Ana

sábado, 22 de outubro de 2011

Bárbaros matam tiranos


Giorgio De Chirico

"Nunca se esquecem as lições aprendidas na dor"

Provérbio africano



Gold Dust by Ibrahim al-Koni


O desafio de escrever o deserto
O romancista e contista tuaregue líbio Ibrahim al-Koni, cujo trabalho está profundamente enraizado nas suas origens no deserto, é um dos autores mais originais e inovadores do mundo árabe.
Não poderemos nunca confundir a cultura de um povo com a tirania ou com a barbárie que presenciamos.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Não digas


Daniel Buren


Vago nesta ânsia
Vaga fragrância.

Silêncio que dança
Com pregas de luz
Entardecendo.
Não digas: «orvalho».
Securas desérticas
Esvoaçam no poente,
Enegrecendo.

Ana

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A Cegueira da Governação






Príncipes, Reis, Imperadores, Monarcas do Mundo: vedes a ruína dos vossos Reinos, vedes as aflições e misérias dos vossos vassalos, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os tributos, vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes as guerras, vedes as mortes, vedes os cativeiros, vedes a assolação de tudo? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. Príncipes, Eclesiásticos, grandes, maiores, supremos, e vós, ó Prelados, que estais em seu lugar: vedes as calamidades universais e particulares da Igreja, vedes os destroços da Fé, vedes o descaimento da Religião, vedes o desprezo das Leis Divinas, vedes o abuso do costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias, vedes os sacrilégios, vedes a falta da doutrina sã, vedes a condenação e perda de tantas almas, dentro e fora da Cristandade? Ou o vedes ou não o vedes. Se o vedes, como não o remediais, e se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra: vedes as obrigações que se descarregam sobre vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre vossas consciências, vedes as desatenções do governo, vedes as injustças, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes as potências dos grandes e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores e gemidos de todos? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos.
Padre António Vieira, in Sermões, séc. XVII

sábado, 8 de outubro de 2011

A Feira


 06 de outubro - quinta-feira. Celebração de Mokosh,


Ao longe o ruído da turba. Sol de fim de Verão, quente, choco. Ardem, em turbilhão, pensamentos dispersos, diversos. Um cheiro absurdo regressa dos idos medievos. Sujidade e fritos. Farturas de vida e de sonhos que partem neste suave suão. Sopro perturbador para mulheres inquietas. A feira.
Vinham em Outubros de primeiras chuvas, dos arredores onde habitavam aldeias brancas de casas térreas feitas de argila em paredes grossas. As mulheres caiavam, de pé, o branco brilhante e repetiam em tecituras contínuas esse gesto milenar de que o mediterrâneo as fez herdeiras. Caiavam em Outubro para apagar o Verão. A feira.
Garotos experimentavam botas duras de couro que o sebo haveria de amansar quando o gesto se repetisse vezes sem conta aos soalheiros de  Domingo. Impermeáveis, as botas haveriam de enfrentar os rigores chuvosos de vários Invernos e as solas seriam trocadas, cardadas, vezes sem conta. A feira.
Começava a escola rigorosa, ritual, passaporte para uma vida melhor - a escola sempre a sete de Outubro. Os pais levavam árvores novas que haveriam de adocicar os dias de Verão. Erguer-se-iam floridas, seriam fonte de alimento para novas vidas que mulheres trigueiras e magras carregavam nos ventres do Inverno de noites longas e leitos quentes.
A Feira de Outubro dominava a vila, a vida. A Feira de Outubro iniciava o ciclo. 
Hoje, a feira é um caos na desordem dos dias.

Ana




quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Tomas Tranströmer - o Nobel e Portugal



Nobel da Literatura 2011






FUNCHAL

O restaurante do peixe na praia, uma simples barraca, 
construída por náufragos.
Muitos, chegados à porta, voltam para trás, mas não assim 
as rajadas de vento do mar.
Uma sombra encontra-se num cubículo fumarento e assa 
dois peixes, segundo uma antiga
receita da Atlântida. Pequenas explosões de alho.
O óleo flui nas rodelas do tomate. Cada dentada diz-nos que
o oceano nos quer bem,
um zunido das profundezas.

Ela e eu: olhamos um para o outro. Assim como se trepássemos 
as agrestes colinas floridas,
sem qualquer cansaço. Encontramo-nos do lado dos animais, 
bem-vindos, não envelhecemos. Mas já suportámos tantas 
coisas juntos, lembramo-nos disso, momentos em que 
de pouco ou nada servíamos (por exemplo, quando esperávamos 
na bicha para doarmos sangue ao saudável gigante –
ele tinha prescrito uma transfusão).
Acontecimentos, que nos poderiam ter separado, se não nos tivessem 
unido, e acontecimentos
que, lado a lado, esquecemos – mas eles não nos esqueceram!
Eles tornaram-se pedras. Pedras claras e escuras. Pedras de 
um mosaico desordenado.
E agora mesmo acontece: os cacos voam todos na mesma direcção, 
o mosaico nasce.
Ele espera por nós. Do cimo da parede, ilumina o quarto de hotel, 
um design, violento e doce,
talvez um rosto, não nos é possível compreender tudo, mesmo 
quando tiramos as roupas.

Ao entardecer, saímos.
A poderosa pata azul escura da meia ilha jaz expelida sobre o mar.
Embrenhamo-nos na multidão, somos empurrados, amigavelmente, 
suaves controlos,
todos falam, fervorosos, na língua estranha.
“ Um homem não é uma ilha “

Por meio deles fortalecemo-nos, mas também por meio de 
nós mesmos. Por meio daquilo que
existe em nós e que o outro não consegue ver. Aquela coisa 
que só se consegue encontrar
a ela própria. O paradoxo interior, a flor da garagem, a válvula 
contra a boa escuridão.
Uma bebida que borbulha nos copos vazios. Um altifalante 
que propaga o silêncio.
Um atalho que, por detrás de cada passo, cresce e cresce. 
Um livro que só no escuro se consegue ler.





LISBOA

No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam nas
subidas.
Havia duas prisões. Uma delas era para os gatunos.
Eles acenavam através das grades.
Eles gritavam. Eles queriam ser fotografados!

"Mas aqui", dizia o revisor e ria baixinho, maliciosamente,
"aqui sentam-se os políticos". Eu vi a fachada, a fachada, a fachada
e em cima, a uma janela, um homem,
com um binóculo à frente dos olhos, espreitando
para além do mar.

A roupa pendia no azul. Os muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma dama de Lisboa:
Isto é real, ou fui eu que sonhei?

Tomas Tranströmer, poeta sueco


tradução de Luís Costa






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EM PORTUGUÊS:
21 poetas suecos, publicado em 1981 pela editora Vega, uma obra organizada por Vasco Graça Moura e Ana Hatherly

sábado, 1 de outubro de 2011

O pajem

Madeira, José Alves





O pajem
Segura a veste do senhor
O pajem
Aperta a mão de cada estupor
O pajem
Caminha sem indecisos
Pela arrogância
Anestesia com sorrisos
A ignorância
Pobre
O pajem se esquece
Pobre
Não é nobre nem esmorece

Serve tão só o seu senhor
O pajem na ilha - flor


Ana